VÁRIOS OLHARES E SABERES: EFEITOS DO IMAGINÁRIO SOBRE LIDERANÇA NOS PROCEDIMENTOS DE TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO DE LÍDERES ORGANIZACIONAIS.

Gilberto Braga Pereira

Das gerações e das imagens sobre autoridade

 

A cronologia iniciada pelo ano de nascimento e as diferenças etárias situam-se entre os mais elementares parâmetros determinantes do destino e da vida humana. Na sociedade humana, a transição biológica, marcada pelas diferentes fases etárias, condiciona-se, obviamente, a definições culturais e constitui  uma base para a definição dos seres humanos, para formação de atividades e relacionamentos mútuos e para as diferentes distribuições dos papéis sociais. Embora a significação das diferentes idades e a extensão e limites das idades, que formam categorias etárias relativamente unitárias, variem de uma sociedade para outra, não conhecemos nenhuma sociedade que não distinga as várias ‘idades’ e não as defina por meio de normas e valores de sua tradição cultural.[...] As características de um grau etário não podem ser totalmente compreendidas, exceto na sua relação com as características de outros graus (EISENSTADT, 1976, p. 2-3).


Assim, as definições culturais relativas a cada grupo etário distinguem-no em seu conjunto de características básicas, não obstante a variedade de detalhes passíveis de enumeração em cada indivíduo que o compõe. “Um ‘grupo etário’ é usualmente definido em termos amplos como um ‘tipo humano’ geral e não como qualquer traço ou papel específico, pormenorizado” (ibidem, p. 2). Além de, em certa medida, serem culturalmente atribuídas a determinada idade atividades específicas, servem principalmente como expressões simbólicas e rituais de um padrão de comportamento mais abrangente.


Uma definição cultural de uma faixa etária ou de uma gama de idades é sempre uma ampla definição de potencialidades e obrigações humanas numa dada fase da vida. Não é uma prescrição ou expectativa de um papel detalhado, mas de disposições gerais, básicas, no sentido das quais podem ser constituídos papéis mais específicos e às quais eles podem ser atribuídos (ibidem, p. 2).
As definições institucionais em uso convencionaram chamar de jovens aos que se situam entre os 15 e os 24 anos. Com esse parâmetro é possível, pelo menos cronologicamente, supor-se o que vem a ser um adulto.


Portanto, o recorte “gerações”, além de poder ser entendido como uma categorização, carrega consigo uma conotação ideológica, visto que se associa regularmente a significados, valores, expectativas e grau de importância relativa de cada segmento etário, quer na visão individual ou coletiva. As expectativas de papel ficam, pois, condicionadas a esses artefatos culturais e estão inseridas em cada segmento etário numa relação recíproca que lhes dá sentido. Ou seja, as características de uma determinada geração e as expectativas de papel a elas relacionadas só podem ser compreendidas num comparativo às outras gerações, em seus contrastes e semelhanças e, também, em uma visão de continuidade, ante a qual se torna possível obter um mapa total das potencialidades humanas.
Depreende-se, portanto, que igualmente para a sociedade e para os indivíduos a distinção por categorias etárias cumpre função primordial para o indivíduo, estabelece parâmetros necessários à integração e à auto-identificação; para o sistema social constitui elemento essencial à sua estruturação.
É bem verdade que cada cultura estabelece os intervalos em anos que configurariam cada geração, e isso é um dificultador quando se pensa em uma análise comparativa. Também é verdade que não se pode tomar os referenciais em anos como absolutos, até porque não é possível obter sempre uma regularidade de fenômenos, ainda que comparativos gerais possam ser feitos mediante uma categorização igualmente abrangente e não absoluta.  Além do mais, as peculiaridades e os ritmos individuais sempre reservarão a possibilidade de respeitar a distinção e ao mesmo tempo fazer lembrar que cada indivíduo é único.
No artigo “Quem é a geração X?”,  Conger (2002) caracteriza três gerações distintas em sua relação com o local de trabalho e o fenômeno da liderança. Como o artigo resulta de pesquisa realizada nos EUA, resta saber se as tendências também se aplicam à realidade do Brasil e se o grau etário caracterizado corresponde com exatidão ao proposto para aquela sociedade.
A título de esclarecimento, o autor conceitua “gerações” como
[...] produtos de fatos históricos que influenciam profundamente os valores e a visão de mundo de seus membros. Esses eventos trazem às pessoas lembranças e emoções fortes, que moldam profundamente suas idéias sobre instituições, autoridade, dinheiro, família e carreira (CONGER, 2002,  p. 69).


A “Geração X” a que o autor se refere no título de seu artigo compreende os indivíduos nascidos entre 1965 e 1981 , ou seja, os adultos dos dias atuais, que inicialmente foram considerados slackers,
um grupo de niilistas desmotivados e céticos [...] desconfiam da hierarquia. Preferem arranjos mais informais. Querem julgar mais pelo mérito do que pelo status. São bem menos leais a suas empresas. Apreciam o trabalho em equipe. Conhecem computadores por fora e por dentro. Gostam de dinheiro, mas também procuram equilíbrio com a vida pessoal. Enfim, estão mudando as empresas” (CONGER, 2002, p. 64-65).


Avessos à hierarquia, vale reforçar, esses indivíduos preferem o trabalho em equipe e desejam um funcionamento comunitário para a empresa. Respondem à necessidade de seu tempo, pois só  frutificam e prosperam nas organizações contemporâneas porque estas tiveram, por sua vez, de responder aos imperativos de mercado, às exigências de competitividade e qualidade. Nesse caso, não se podem dissociar comportamentos socialmente aceitos da materialidade que os suscita e permite sua consolidação.
Nessa perspectiva, a do materialismo histórico, a Gestação X contrasta substancialmente com a “Geração Silenciosa”, formada pelos chamados burocratas  – executivos dos anos 50 a 70 do século passado –, que foram leais às empresas em que trabalhavam e delas receberam lealdade em troca. Representativos da “era de comando”, esses executivos foram surpreendidos, em meados dos anos 70, pela aceleração das mudanças no capitalismo ocidental e cederam espaço como força de trabalho para a “Geração Baby Boom”, composta por pessoas nascidas entre 1943 e 1964.
A lentidão e a inflexibilidade adaptativa dos modelos hierárquicos deram lugar às equipes multifuncionais por projeto, tendo por base uma estrutura de funcionamento supostamente muito mais democrática e participativa.


À medida que o modelo de comando perdia eficácia e o trabalho em equipe crescia, os relacionamentos no local de trabalho se tornaram mais informais e os funcionários mais dinâmicos. Eles passaram a ter menos paciência com as restrições do sistema hierárquico e menos disposição de se submeter automaticamente aos chefes. Um chefe não conseguia mais administrar com a facilidade que tinha na década anterior. A lealdade diminuiu drasticamente – no início por parte da empresa, mas os funcionários não demoraram a seguir o exemplo (CONGER, 2002, p. 66-67).
Com os boomers, assiste-se à ruína da aura que envolvia as posições de autoridade. Para eles, a autoridade perdia gradativamente a confiabilidade, quando não lhes parecia totalmente errada nos paradigmas, decisões e visão. Em uma proporcionalidade inversa, como não poderia ser de outro modo, crescia a independência, reduzindo-se a obediência.
Para Conger (2002, p. 67-68),
a grande importância atribuída à independência está, em parte, relacionada ao crescente aumento da riqueza nos EUA. As pessoas passaram a dispor de mais dinheiro para adquirir os serviços e aparelhos necessários para manter uma casa. Esse fator tornou-as menos dependentes da família e da comunidade. Além disso, nos anos 60, as pílulas anticoncepcionais chegaram ao mercado, dando às mulheres maior controle sobre si mesmas e contribuindo para o surgimento do movimento feminista.
Essas mudanças [dentre outras] criam a nova ‘raça’ dos executivos da geração baby boom.
Num espaço de uma única geração, portanto, palavras como ‘chefe’ e ‘presidente’ mudaram completamente de sentido. Não representam mais sinais positivos de realização e autoridade, mas sim símbolos de distanciamento das pessoas, de agressividade gratuita e de outros atributos indesejáveis.


Para o propósito desta dissertação encontram-se outros argumentos que justificam a escolha do recorte “gerações” para se tentar compreender o tema central liderança, através da busca de respostas às questões expressas nos seus objetivos específicos, porque
o desenvolvimento bem sucedido de padrões de comportamento que se conformam às normas e expectativas de papéis de uma sociedade envolve um alto grau de integração da personalidade e concomitante desenvolvimento de atitudes especiais no quadro da personalidade do indivíduo. Entre estas a atitude do indivíduo para com a autoridade e sua cooperação são extremamente cruciais para o funcionamento adequado da personalidade no contexto do sistema social. Estas atitudes podem ser subdivididas em três categorias principais: a capacidade de obedecer a pessoas investidas de autoridade; a capacidade de cooperar com seus iguais; e a pré-disposição em aceitar responsabilidade e assumir autoridade em relação a outras pessoas. (EISENSTADT, 1976, p. 8).
Em todas as sociedades os indivíduos são solicitados a desempenhar papéis relacionados às três disposições enumeradas por Eisenstadt (1976). Através dessa representação de papéis relativos a diferentes graus etários, criam-se padrões de predisposições gerais capazes de dar sustentação à aceitação e ao exercício da autoridade, bem como padrões cooperativos adquiridos mediante a interação entre os indivíduos da mesma geração.


Uma vez entendido o sentido do recorte “gerações”, pode-se tomar um pequeno desvio pela trilha explicitada nos vínculos de autoridade e cooperação como fenômenos naturais no processo de socialização.
Sennett (2001) destaca quatro formas sociais de vínculos, a saber: a autoridade, a fraternidade, os rituais e a solidão, definindo-os como emoções sociais e importante caminho para se compreenderem os compromissos estabelecidos entre os membros de um determinado grupo social ou de grandes conglomerados modernos. Para ele, as predisposições descritas por Eisenstadt (1976) são precondições para a existência social e têm conseqüências políticas relevantes.
Como contribuição à compreensão, vale um aprofundamento quanto ao que Sennett (2001) propõe. No caso, esses vínculos têm um duplo significado, visto que traduzem ligação, mas também limite imposto.


A crença na autoridade traz consigo a confiança e o amparo, mas em contrapartida demanda obediência e submissão. É uma forma de ligação entre pessoas desiguais. O ritual unifica, une pessoas iguais ou não, mas o vínculo desaparece tão logo é encerrado. A fraternidade constitui laço que interliga pessoas semelhantes e pode conduzir a uniões tão próximas, que ameaça a identidade individual e cria lutas internas acerca de quem faz parte “realmente” do grupo. A solidão é uma emoção da ausência, expressa na não-ligação e conseqüente falta de limites; a sua natureza dolorosa empurra, porém, em direção à busca de uniões substitutivas que, no fundo, não a superam.
Em meio a esse contexto da natureza dos vínculos sociais, Sennett (2001) afiança que todas as suas quatro formas são emoções sociais. Três criam vínculos, e uma os nega. E sugere que, “como expressões de sentimentos sobre outras pessoas, todas essas emoções exigem um estudo histórico: quem são as pessoas de que estamos falando, quando, e em que circunstâncias?” (ibidem, p. 22).


Interessa mais de perto ao propósito deste trabalho de dissertação um aprofundamento especial no vínculo de autoridade e, principalmente, enumerar as imagens usuais presentes na sociedade acerca do fenômeno e determinar se estas sofrem alterações ao longo dos anos e em cada grau etário. É o mesmo Sennett (2001) que contribui parcialmente para tal intento. Ele lembra que etimologicamente a raiz de autoridade é “autor”, o que sugere a implicação com algo produtivo. Contudo, a palavra “autoritário” é freqüentemente usada  para descrever pessoas ou sistemas repressivos.  Assim, ainda que todos saibam intuitivamente o que é autoridade, a idéia em si não é muito fácil de ser traduzida em um conceito restrito. Uma imagem passível de associação é o autocontrole e o controle sobre o que está fora, que por sua vez remete à idéia de disciplinarização, panotipismo etc. Também é factível uma correlação com força e capacidade de inspirar medo. Em relação à força, o seu equivalente político é poder. Não raro, autoridade e poder são usados como sinônimos, mas também é possível entendê-los como conceitos distintos.


Por outro lado, consideramos a idéia de força implicada no medo de que a autoridade seja destruída. Trata-se da força dos valores e crenças de nossa geração; queremos que eles perdurem, mas isso não se dá, porque nosso corpo não perdura. Tanto na sociedade quanto na vida privada, queremos um sentimento de estabilidade e ordem, benefícios que são supostamente trazidos por um regime dotado de autoridade (ibidem, p. 31-32)
A idéia de força carrega consigo uma complexidade notória, ainda mais quando associada à sua componente “integridade”. Nem sempre as forças que dão autoridade a uma determinada pessoa, grupo etário ou instituição servem a um ideário elevado ou como garantia de proteção aos demais, mas tão somente de sua dominação.


Sennett (2001, p. 33) conclui em meio a todas essas considerações que, em sentido geral, a autoridade “é uma tentativa de interpretar as condições de poder, de dar sentido às condições de controle e influência, definindo imagens de força. [...] Na vida cotidiana, a autoridade não é uma coisa. É um processo interpretativo que busca para si mesmo a solidez [...]”.


Entender autoridade como um processo de interpretação do poder choca-se com duas correntes presentes no pensamento social moderno, conforme salienta Sennett (2001), na medida em que a coloca nos olhos de quem a vê.
Weber é tido por Sennett (2001, p. 34) como o principal representante da primeira corrente, na qual se preconiza que as condições do poder é que determinam o que o sujeito vê e sente. “Weber acreditava que as pessoas pensam no poder de diversas maneiras, mas que apenas alguns tipos de pensamentos as levam a conceber os poderosos como autoridades, e esses pensamentos seriam determinados pelos tipos de controle exercidos pelos poderosos.”. É daí que Weber estabelece três categorias que traduzem as imagens sobre autoridade. A primeira é a tradicional, que se baseia na imagem de uma sociedade de privilégios hereditários. A transmissão de autoridade está fundada num passado tão remoto, que só é possível  compreendê-la à guisa de mitos e lendas. A seguinte refere-se à legal/racional, calcada na crença na legalidade das normas e no direito de dar ordens, reservado àqueles que ocupam uma posição deliberada por essas normas. “A última categoria é a carismática, que se ‘assenta na devoção incomum e extraordinária de um grupo de seguidores à sacralidade, à força heróica ou à exemplaridade de um indivíduo e da ordem revelada ou criada por ele’” (ibidem, p. 35). No pensamento weberiano, o autor ainda destaca a identificação da autoridade com a legitimidade. “Autoridade como crença na legitimidade, mediada pela obediência voluntária: aí está uma abordagem da autoridade que adquiriu imensa influência no pensamento social moderno” (ibidem, p.36).
A outra corrente, descrita por Sennett (2001, p. 37), que supostamente se choca com a idéia de autoridade associada à interpretação do poder, tem  como seus mais fortes representantes Freud e “[...] autores que enfatizam o processo pelo qual as pessoas percebem a força nos outros, independentemente do conteúdo do que percebem”. Particularmente a Psicanálise “pinta um quadro trágico”, na visão de Sennett (2001), composto por “imagens de autoridade formadas na infância e que persistem na vida adulta” (ibidem, p. 37), que permeiam as lutas dos indivíduos com o poder, o direito e a legitimidade. Ao interpretar o presente, o adulto não o faz em relação ao presente propriamente dito mas em função do que existiu um dia em suas experiências pregressas. É a partir dessas experiências que ele constrói a imagem de força.


A “Escola de Frankfurt”, sob influência da Psicanálise, busca estabelecer combinações, associando o pensamento psicanalítico com uma visão crítica marxista traduzida em dupla ênfase: de um lado, a preocupação em verificar os mecanismos pelos quais as imagens infantis perduram na vida adulta (funcionamento da memória, projeção etc.) e, de outro, as condições sociais que intervêm na permanência desses padrões infantis.
No dizer de Sennett (2001), a Escola de Frankfurt, mesmo que também sofra críticas como a corrente psicanalítica, lança questionamentos a determinados pressupostos aceitos:
Aquilo em que as pessoas se dispõem a acreditar não é uma simples questão da credibilidade ou legitimidade das idéias, regras e pessoas que lhes são apresentadas. É também uma questão de sua própria carência de crer. O que elas querem de uma autoridade é tão importante quanto o que a autoridade tem a oferecer. [...] a própria carência da autoridade é moldada pela história e pela cultura, assim como pela predisposição psicológica (ibidem, p. 41).


É possível manifestar concordância com a idéia de Sennett (2001) quando ele destaca que essas contribuições permitem compreender os ingredientes que compõem a interpretação, revelam a implicação tanto das motivações pessoais quanto das condições sociais, mas ainda não estabelecem com exatidão e clareza como a interpretação é construída na troca social. Responder a essa falta é buscar compreender um aspecto peculiar à atualidade: “os poderes formalmente legítimos das instituições dominantes inspiram um forte sentimento de ilegitimidade entre os que estão submetidos a elas. Todavia, esses poderes também se traduzem em imagens de força humana [...]” (ibidem, p. 42).
Basicamente duas imagens acerca do exercício da autoridade são apresentadas por Sennett (2001). A primeira é tida como um legado do século XIX para o XX, que é o paternalismo. No paternalismo, a relação pai-patrão é facilmente estabelecida. Para o autor, a expressão ainda é usada indiscriminadamente como sinônimo de patriarcalismo ou mesmo de patrimonialismo. Ainda que sejam reconhecidas como formas masculinas de dominação, tais expressões não devem ser entendidas como iguais. A segunda imagem diz respeito à “autoridade autônoma”.


No patriarcado, continua Sennett (2001), as pessoas estão conscientemente vinculadas por laços consangüíneos. Os homens são o elo de união dessas famílias e deliberam. A transmissão da propriedade dá-se pela linhagem masculina. No matriarcado, ao contrário, é a mulher o elemento central, enquanto que na poliarquia nenhum dos gêneros é dominante. Já o patrimonialismo, apesar de guardar uma certa semelhança com a forma de dominação anterior, distingue-se pelo fato de as pessoas não conceberem suas relações sociais exclusivamente  dentro do parâmetro família. Outros laços de união e pertencimento são aceitos como meios de herança de bens ou posição. O paternalismo, por sua vez, difere dos modelos precedentes no que há de mais fundamental, ou seja, o patrimônio não existe. “A propriedade já não é legalmente transmitida do pai para o filho varão mais velho, de acordo com o princípio da primogenitura. Tampouco a sociedade garante legalmente que a posição ocupada por pessoa de uma geração seja ocupada por um seu parente da geração seguinte” (ibidem, p. 77).


No paternalismo, em síntese, os homens constituem ponto central no processo de dominação, que por sua vez está baseado em seu papel de pai. A força, a proteção, o julgamento são a base simbólica que sustenta esse pressuposto. A legitimação do poder dá-se menos pela via material do que pelos símbolos e crenças. É, portanto, uma forma de dominação não contratual, e o resultado disso, afirma Sennett (2001), é a introdução de uma ambigüidade relativa à figura de autoridade.
A criação da imagem pai-patrão encontra eco na visão especular preconizada pela Psicanálise, em que se confia que as relações sociais mais amplas espelham as relações com o par parental. Sennett (2001, p. 78) entretanto adverte: “O trabalho não é uma extensão natural da família.”  


Curiosamente, mesmo com o declínio do modelo patrimonialista na sociedade moderna, a liberdade plena esperada não se consolidou. O paternalismo buscou novos meios para o que o patrimonialismo tinha realizado, ou seja legitimar o poder fora da família a partir do apelo aos papéis exercidos dentro dela. Reconstruíram-se vínculos simbólicos, e a imaginação encarregou-se de restabelecer o que materialmente poderia ser destruído. A fusão pai-patrão em relação mútua modifica-se em seus significados originais, ampliando o sentido para além daquele encontrado nos termos em separado. Tanto “pai” como “patrão” são formas de controle, mas o primeiro empresta ao segundo um sentido de “cuidado” e “proteção”, sugerindo a fusão cuidado-poder.


Se se pode entender a autoridade como alguém que usa a força para proteger os demais, estabelece-se uma estratégia paternalista meio tacanha, na medida em que a proteção prometida no paternalismo está a serviço dos interesses de quem exerce a autoridade e só é mantida sob esses termos. Há portanto uma promessa de amparo, negando-se porém o que há de essencial no cuidado, ou seja, seu propósito de tornar independente e forte aquele que o recebe e de dar-lhe consciência crítica.


Creio que poderíamos dizer que a junção do poder com o cuidado ‘só’ é idealista, hoje em dia, porque essa consciência crítica está moribunda. Mas também estamos passando a ver, na sociedade moderna, exatamente como é o poder sem o amparo. O poder também foi transformado numa imagem de autoridade, no pólo oposto ao do paternalismo. Em vez do falso interesse, essa nova autoridade não expressa interesse algum pelos outros. Trata-se da autoridade da figura autônoma [...] (ibidem, p. 115).
A imagem de autoridade autônoma professada por Sennett (2001) situa-se, para ele, no extremo oposto ao da imagem de paternalismo na sociedade moderna, como visto na afirmação acima. No paternalismo, a autoridade é exercida pelo “bem” de outrem. “Cuidar dos outros é uma dádiva da autoridade, e ela só a confere desde que isso atenda a seus interesses.” (ibidem, p.117).  A autoridade autônoma, por seu turno, não parte de qualquer intenção de cuidar. A sutileza dessa imagem parte do princípio de que na vida social são possíveis a auto-suficiência e a inexistência de controle de uns sobre os outros.


Na contemporaneidade, a autonomia assume uma forma simples, por um lado, traduzida na posse de “qualificações”, e complexa, por outro, relativa à estrutura do caráter (ibidem, p. 118). Sob o rótulo de “sociedade das especializações”, a sociedade moderna tem como valor a perícia, a habilidade técnica, conferindo independência. Já a forma complexa da autonomia liga-se à reunião de atitudes capazes de conservar essa mesma independência. Desvinculado de qualquer qualificação técnica, esse rol de traços de personalidade “personifica” a autonomia complexa. Deter a capacidade de julgar, por não se esperar aprovação, constitui-se primordialmente no autocontrole, numa força que confere autoridade natural aos olhos de quem a possui. Portanto, a indiferença, ou melhor, a impessoalidade burocrática confere autoridade nas instituições modernas.  
Tendo em vista essa breve passagem pela discussão de alguns elementos essenciais ao complexo conceito de autoridade, fica a idéia de que o mesmo está vinculado ao próprio processo de socialização e recebe forte influência cultural. Nas sociedades ocidentais, a relação entre os diversos graus etários é sempre simétrica e expressa de forma autoritária, onde o agente socializante adulto constitui-se no primeiro modelo de autoridade experienciado.
Descobrimos, assim, que relações entre diversos graus etários são necessariamente simétricas do ponto de vista da autoridade, do respeito e da iniciativa. Os graus etários mais idosos geralmente exercem alguma autoridade sobre os mais jovens; podem dirigir, formal ou informalmente, suas atividades e ganhar seu respeito. Esta assimetria básica de poder e autoridade é característica da interação entre diferentes faixas etárias e gerações como um todo (EISENSTADT, 1976, p. 9).


O que pode acontecer, entretanto, quando a experiência como atributo diferenciador e associado à idade perde o seu valor intrínseco?
Nas sociedades modernas, a formação acadêmica e a aquisição de competências vêm assumindo, sobremaneira, um grau de valorização ímpar em detrimento da experiência ou perícia obtida com o tempo. No próximo capítulo aprofundam-se tais variáveis.
Todos esses elementos entrecruzados demarcam o propósito de se discutir, nesta pesquisa, a questão da liderança e as expectativas de papel a ela relacionadas, o que tem ocorrido no imaginário geracional atinente a imagens de autoridade, bem como seus reflexos na tecnologia de preparação de líderes organizacionais.


Como já mencionado, não resta dúvida de que fenômenos histórico-culturais distintos, além do próprio ciclo biológico, demarcam um momento, um tempo, uma geografia e um lugar de memória conforme sugere Nora (apud FERREIRA, 2002, p. 11) para se recordar. E, não obstante haja uma certa imprecisão quanto aos limites etários que demarcam cada geração, o que importa, então, no fim de contas, é a experiência comum a idades similares e que estas se circunscrevem dentro de uma escala de gradação etária. Se não há como definir os limites iniciais e finais exatos, em anos ou datas, desse conjunto de indivíduos que compõem uma dada geração, referências conceituais podem fazê-lo.


Além do mais, toda a realização humana se mantém sempre em estreito vínculo dialógico por um lado, com o passado e a tradição, para confirmá-los ou negá-los, e, por outro, com o presente, no qual busca elementos que confirmem a contemporaneidade e a ela se articulem. Essa realização é, pois, sempre histórica, relacionando-se com o momentum de determinada sociedade, pelo menos por duas vias: (1) recebe um sistema convencionado, uma “linguagem” própria àquele tempo e (2), ainda que esteja vinculada a essa linguagem, as novas articulações obtidas a partir dela interferem produtivamente sobre a realidade social, modificando-a.
Existem, pois, padrões sociais organizativos, assim como se têm processos psicológicos intrínsecos ao indivíduo que interagem e conformam um fazer humano. Esquivando-se de quaisquer determinismos – psicológico, social, genético etc. -, as narrativas de uma geração espelham um tempo em que a experiência (re)visitada aconteceu. Elas materializam um imaginário que confere um significado ao mundo.


Portanto, ao que parece, não tem grande peso a data início ou data fim, porque está-se falando de um tempo afetivo, está se falando de uma memória geracional em que as lembranças e as histórias pessoais se articulam a um contexto mais amplo, povoado sim de fatos datados, mas sobretudo por reconstruções, pois são releituras, são lembranças.  Parte-se do princípio de que os narradores foram testemunhas, estiveram lá e por isso brindam-nos com suas versões e visão. A uma “história oficial” entrelaça-se uma “outra”. E foi esse o caminho que se trilhou: buscou-se na memória geracional a construção de um imaginário sobre liderança.
É sabido que a memória como categoria psicológica distingue-se como conceito. Foge ao propósito desta dissertação aprofundar nessa discussão. Entretanto, é possível afirmar que não há memória em que o imaginário não esteja presente. Do mesmo modo, não há imaginário sem que se identifique a memória de indivíduos, grupos  ou sociedades. 


Este capítulo justifica-se como a descrição de uma conjuntura, de um contexto, e no alinhamento de conceitos importantes, a saber: imaginário e gerações. Acredita-se ter conseguido o intento, na certeza de que nem tudo foi dito e que mesmo o que foi dito não é, em absoluto, tudo o que seria possível e necessário dizer. Constitui-se apenas em um olhar de alguém que se encanta com a descoberta da sua própria história e tranqüiliza-se ao constatar que o ser humano é só, o que não significa necessariamente que está sozinho. A cultura o salva, o redime. Sua história o acolhe e lhe dá sentido, e ele invariavelmente se reconhece em todas as outras histórias.


O próximo capítulo trata dos temas liderança e tecnologia de preparação de líderes. Tendo-se configurado um pano de fundo, pretende-se mergulhar especificamente no objeto central desta pesquisa. Inicialmente o conceito de liderança será analisado detidamente e, depois, circunscrito dentro de correntes teóricas que o abranjam. Esse arcabouço servirá de sustentação para a análise dos dados empíricos a ser apresentada no capítulo 4, ao mesmo tempo em que formará uma base para que se possa explorar a variável tecnologia de preparação de líderes como subseção do próprio capítulo 3.


VELHO, O. G. Geração. In. FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986 apud Schmidt (2001, p. 88) destaca que o conceito sociológico de geração pode ser entendido em quatro sentidos distintos: “[...] (i) conjunto de todos os membros de uma sociedade; ii) conjunto dos descendentes do mesmo progenitor ou progenitores; iii) conjunto dos indivíduos que nasceram aproximadamente na mesma época; iv) período entre o nascimento dos indivíduos nascidos na mesma época e sua prole”. E, em conformidade com Áries (1997), o termo recebe a conceituação de [...] uma população relativamente homogênea, que corresponde aos homens e às mulheres nascidos no espaço de uma vintena de anos [...].

Eisenstadt (1976) salienta que um grupo ou sociedade é um sistema de papéis e que o papel é a unidade básica de sua integração, compreendendo um segmento do comportamento total do indivíduo em relação a outros indivíduos e organizando todos eles em padrões bastante distintos.  

Podem-se identificar intervalos distintos para definir cada geração. Entretanto, em todos, nota-se a permanência dentro das décadas consideradas por Conger (2002), ou seja, para a Geração X temos os nascimentos entre os anos 1960 e 1980 e assim por diante. Há, portanto, uma diferenciação de autor para autor, em torno de dois a três anos, o que no fim não perturba a compreensão do momento social caracterizado.

Neologismo derivado de panópitico que se refere a ponto ou posição central de onde se tem vista periférica e, ainda, local de guarda com estas características..

Expressão utilizada para designar “restos”. Museus, arquivos, cemitérios, coleções, festas, aniversários etc., representam os marcos de uma outra era. Esses lugares nascem e perpetuam-se sob a égide de que não há memória espontânea e são lugares nos três sentidos: material, simbólico e funcional simultaneamente, em gradações diferentes. Mesmo o lugar material só é lugar de memória à medida em que o imaginário o investe de uma aura simbólica.

NORA, P. A problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. São Paulo: USP, p. 7-20 (mimeo) apud Ferreira (2002).

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